segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Meu melhor amigo lambe o próprio pau e fui salvo por Jesus

Meu melhor amigo lambe o próprio pau e fui salvo por Jesus
Que cansaço! E agora ainda me faltam algumas horas até chegar em casa. Novamente eu aqui, dentro da bosta de um ônibus cheio de gente que fala. O trabalho na construção civil não é fácil. É pesado, sujo e tranquilizante. Alem de tranquilizante há outro lado bom, solidão. Solidão é sinônimo de liberdade, e liberdade em meu dicionário é o mais próximo de felicidade. Bobagem... Trabalho com outros funcionários na obra. Outros muitos funcionários. Mas todos estão sozinhos. Até certo ponto há um companheirismo entre, mas companheirismo é diferente de amizade, amizade que é antônimo de solidão. Companheirismo são vários solitários se movendo em grupo, em um objetivo em comum. Amizade são varias pessoas diferentes, com pensamentos diferentes, ticos e bocetas diferentes tentando achar algo em comum, o que normalmente não acontece, e resulta em todos os tipos possíveis de atritos e intrigas. Estou com quarenta anos, provavelmente a poucos anos do fim e nunca tive um amigo. Não por falta de oportunidade. Ou por não gostarem de mim. Nunca tive um amigo porque nunca entendi que vantagem se tira de uma amizade. Pra que serve? Pelo pouco que entendo funciona como uma troca. Faço favores, te empresto dinheiro, me preocupo contigo, brigo contigo, choro contigo, rio contigo... E espero que quando a necessidade for minha faça o mesmo por mim. Estou certo? Isso é amizade? Ok, isso é amizade. Meu pensamento é simples; então por que trocar um produto pelo mesmo? É como trocar merda por bosta. Deixe comigo, me viro bem com meus próprios favores, dinheiro, preocupações, brigas, choros, risadas... Então fique com os seus.
Merda de ônibus. Ao menos dessa vez pude sentar bem ao fundo. Ter uma visão geral da merda. Entrei primeiro, algo bom, filas são irritantes. Porra! O primeiro passageiro a entrar é uma mulher com uma criança entre dois e três anos, não sei bem, não entendo nada de crianças, talvez tenha oito ou nove. Na verdade crianças e jovens são a segunda coisa que mais odeio no mundo, a primeira são os adultos, claro. Crianças choram, adultos falam e velhos reclamam, é fato. E em um ônibus sempre há uma boa porcentagem de cada. Essa merda cheia de gente nem arrancou e a criança de dois ou três ou oito ou nove anos já está chorando, uma velha já reclamando do calor (compartilho dessa reclamação) e dois de meia idade discutindo sobre o numero das poltronas. Entrar num ônibus e achar seu lugar é algo bem simples, natural e diria até sociável. Muito mais simples que achar uma parceira sexual a fins reprodutivos ou encontrar alimentos na natureza, por exemplo. Animais são sociáveis. Mas esses asnos não conseguem ser, ou fingir ser, o básico de uma sociedade, e eu que sou o misantropo?!
Uma coisa me chamou atenção. Uma mulher, de uns trinta e poucos ou cinqüenta anos, um nariz fino e longo, cabelos feios, pele feia, uma boca de fumante e uma expressão triste, de uma pessoa sofrida. Aparentemente mais uma operária da vida, uma figurante da vida real. Mas o que me chamou atenção, claro, não foi sua aparência física, mas sim o que fez ao entrar no ônibus da merda, o maldito sinal da cruz. Óbvio, cristã. Veio-me a mente uma reportagem que havia lido pouco antes, resumidamente; era sobre um grande pastor televangélico norte-americano que estava culpando uma comediante lésbica e atéia por conta de um furacão que devastou a cidade inteira onde essa tal comediante morava. O furacão seria algum tipo de castigo divino por sua prejulgada depravação e descrença. Porra, que merda de deus que ostenta sua onipotência mas não tem pontaria de acertar só a pobre mulher, precisava foder a cidade toda?
Comparei-me a lésbica. Eu, um pedreiro descrente ali desejando a morte de uma criança simplesmente porque ela não parava de chorar (haaa nem é tão horrível assim, deus mesmo mandou matar várias só por diversão) também merecia algum tipo de castigo divino. Eu seria a lésbica e o ônibus a cidade, talvez algum caminhoneiro dormindo na contra mão seria o nosso furacão. Mas e ai, ele mataria todos só pra me castigar? Incluindo a criança e a mulher cristã. Talvez o sinal da cruz que ela fez ao entrar no ônibus a protegeu, deus não poderia matá-la. E como ele é muito ruim de mira não iria arriscar me matar e acabar matando uma seguidora. E nos tempos modernos deus não mata criança. Que merda, a puta acabou salvando minha vida por implicação. Logo um dos piores subgêneros da humanidade, religiosos. Pessoas que acham que o ser humano é algo especial, têm a prepotência do dono do universo. Especial... Façam me rir.
Eu acharia a vida algo especial se a cada 100 partos só uma ou duas crianças sobrevivessem. Ai sim seria algo especial, mas nascer, crescer e viver me parece algo tão comum, tão sem graça. Nós somos sem graça. Somos feitos basicamente de água, num planeta tapado de água. Seriamos especiais se fossemos feitos de algo raro, mas água?! Somos tão complexos e especiais quanto uma duna que se forma no deserto. Mas esses bostas sempre acham um jeito de parecerem especiais, mas não vou lá, não vou agradecer! Salvou-me porque quis, eu não pedi, assim como não pedi pra Jesus sofrer na cruz por mim. Nunca teria mesmo um ídolo que se entrega ao invés de lutar. Só quero chegar em casa e dormir. Só isso.
Chegando em casa meu cachorro veio me receber. Taco era um bom cão. Recebia-me sempre com festa, quase morria em agonia por não saber falar e perguntar como fui de viagem, se satisfazia com pulos em minhas pernas já que não podia me abraçar. O sorriso na sua cara era notório, era bonito, transbordava alegria. Nunca emprestei dinheiro pra ele nem tive que consolar-lo quando estava mal por alguma decepção amorosa. Ele sempre matou sozinho no peito todas suas tristezas e só compartilhou comigo suas alegrias, mesmo estando ao meu lado nos momentos ruins. Passou fome, mas ao meu lado. Ele nunca teve grandes ambições e muito menos tentou mudar meus defeitos. Se eu quisesse poderia viver muito mais que esses 40 anos que já tenho, mas Taco não, um ser tão superior como o cão vive em média 10. 10 míseros anos, e todos dedicados ao seu dono ou a procurar um. Já viu um cão triste? Sim, é aquele de rua, sem dono, sem ter a quem se dedicar. Tenho certeza que Taco ficaria ao meu lado se eu tivesse que morar na rua, ficaria ao meu lado se me perdesse no deserto. Ele é livre, pode ir onde quiser, sei que é esperto, conseguiria comida fácil na rua, ele só tem 10 anos pra viver, mas não o faz. Mas e eu? Ficaria com Taco, aquele cão miscigenado e fedorento caso tivesse um carro importado ou um apartamento no centro de uma grande cidade? Eu deixaria de estar com uma mulher de beleza clichê pra fazer Taco explodir de alegria simplesmente fazendo cócegas em sua barriga pulguenta? Porra, que triste. Como pode alguém ser amigo incondicionalmente, por simples prazer próprio, por simples altruísmo?!
Especiais?! A humanidade?! Puta de merda! Não merece a vida que tem, todo o tempo jogado fora com suas besteiras, meu cão só tem 10 anos ou menos. Vejo tanto desperdício de vida no mundo todo. Tanta bondade que só fica na teoria, e quando passa pra pratica é feita por interesse, segundas e terceiras intenções. Há evidencias que provam que a humanidade já havia domesticado o cão 35 mil anos atrás, e aquela puta que me salvou acredita que o mundo só tem 6 mil anos! Ordinária, por isso os cães se mostram mais evoluídos e sociáveis que vocês! Os cães, seres bondosos, que merecem viver 80, 90, 100 anos...
Dediquei meus últimos momentos do dia, já noite, pra ficar ali, sentado na grama ao lado de Taco. Não precisei jogar uma bola de borracha pra Taco buscar, nem massagear sua barriga. Ele também ficou ali, sentado ao meu lado com um olhar distante, visando o horizonte que morria por de trás do asfalto. Logo ele levantou, saiu farejando algo no chão em direção ao fim da rua.