Estava chegando de viagem a uma cidade grande, descendo de uma passarela. Quando vejo uma movimentação estranha. Algumas poucas pessoas em volta de alguém sentado, cabeça baixa. Cheguei mais perto e vi sangue. Era um homem, de uns 45 anos de idade. Tinha sangue escorrendo do nariz e um pouco na testa. A rua era movimentada, passavam muitos carros e pedestres, mas pude notar que tinha sangue no asfalto. O que indicava que ele tinha sido atropelado. Mas o homem estava bem, não havia risco de morte e nem o porquê levá-lo a um hospital. Ele era só mais um mendigo atropelado por algum carrão. Na verdade as pessoas ao seu redor nem estavam dando importância, só queriam ver o que outras pessoas também estavam vendo. Era só um mendigo atropelado. Ele fedia muito. Não cheguei perto. Na verdade nem senti seu cheiro. A cidade toda fedia. Mas por sua aparência ele fedia muito, óbvio!
O que me chamou atenção foi seu semblante. Estava ali, sentado. Parado. Com as mãos na cabeça e um olhar triste, distante. Uma expressão de cansaço. O que me levou a pensar; antes de ser atropelado como estava seu rosto? Acredito que exatamente o mesmo de agora, porem, sem sangue. Ele já devia ter um rosto cansado. Olhos fundos e voz de bêbado. Por um minuto tive pena. Pena do mendigo, não de mim. Só se tem pena do que acha inferior. Ele era inferior a mim. Eu tenho uma casa com grama na frente, em um bom bairro. Eu tenho uma mulher e um filho por chegar. Tenho um cachorro que come ração. Tenho um emprego, acordo todo dia às 7 horas, pego meu carro e dirijo meia cidade até meu trabalho. Na hora do almoço como em algum fast-food, depois do trabalho volto pra casa pra assistir novela com minha esposa que passa o dia nos afazeres do lar. Isto claro, durante a semana. Domingo é dia de churrasco e alegria com os amigos. Nossa... Agora deu mais pena do mendigo atropelado. Ele não tem uma vida. Acorda todo dia bêbado em uma sarjeta diferente, usando o meio fio como travesseiro. Não tem comida todo dia, é como um animal que deve sair à procura, talvez encontre, talvez não. Vai depender de seu empenho ao procurá-la. Como na comida, mulher tem que ser procurada, caçada. Deve passar meses sem o calor de uma mulher. E provavelmente quando encontra uma, ela seja no mesmo tipo dele. Suja. Imunda. Também sem vida. Nunca vai saborear uma dessas que vemos na TV, loira com nariz empinado, bunda no lugar e siliconada. Tenho nojo só de imaginar que tipo de mulher ele deve pegar, bêbada, estranha, que definitivamente não se enquadra nessas da TV. E como eles fariam sexo? Imagine, nem ela sendo do mesmo nível dele teria coragem de chupá-lo. Se nem minha mulher me chupa, ela diz que tem nojinho. Às vezes ganho um boquete em troca de algum presentinho. Um colar, ou roupa. Ela me ama mais quando lhe dou presentes. Ela faz qualquer coisa pra aparecer pra suas amigas, até chupar meu pau. Mas e o mendigo? Como vai pagar por um boquete? Se bem que sua companheira não precisaria de um colar, talvez um gole de cachaça.
Cidade grande é uma merda. Ainda bem que estou só a trabalho. Só vim assinar uns papéis e logo pego o primeiro ônibus de volta a minha cidade, que é bem menor e sem mendigos. Assinar papéis, este é meu trabalho. Com o que o mendigo se ocupava durante o dia? Além de ser atropelado e dar pena as pessoas. Devem existir vários mendigos já atropelados nesta cidade. Mas com certeza devem existir muitos caras com uma vida legal igual a minha e que trabalham assinando papéis. Que merda! Não consigo parar de comparar a vida do mendigo com a minha.
Tudo resolvido era hora de voltar pra casa. Estava bem cansado, tinha assinado vários papeis. Como era perto da rodoviária e já tinha ido mesmo a pé, resolvi voltar caminhando. Mentira. Queria ver se o mendigo ainda estava lá. Mas não, já tinha ido. Ainda tinha um pouco de sangue e agora um carrinho hot-dog ao lado. O lugar fedia muito. Comprei minha passagem. Tive que esperar um tempo até o horário do ônibus. Onde o mendigo havia ido? Não conseguia imaginar o que ele estava fazendo agora. Senti um tipo desespero ao pensar sobre isso. Eu sabia onde estava indo. Qualquer pessoa que me olhasse por 2 minutos deduziria que eu estava ali esperando a merda de um ônibus cheio de gente que também estava indo pra puta que pariu. Qualquer pessoa perceberia que eu tinha uma casa e uma esposa. Um cachorro que come ração. Mas e o mendigo? Onde foi?! O que foi fazer?! Acho que nem ele tinha planejado o que fazer, simplesmente foi fazer. E eu? Puta merda! Esse mendigo veado não pode ser mais livre que eu. Mas eu também não planejei vir aqui assinar um monte de papeis. Alguém planejou pra mim! Que merda de vida enlatada comprada na TV! Todos os dias se vendem vidas iguais as minhas, por que aquele bosta não junta dinheiro e compra uma vida igual a minha?!
Preciso imaginar um destino pro mendigo, pra tirar essa paranóia da cabeça. Hoje é quarta-feira, são 2 da tarde. Deve ser um dia comum pra ele. Mendigos sempre têm cachorro. Isso! Ele foi comprar ração pro seu cachorro. Não... Ele não deve ter dinheiro sobrando pra isso. Deve ter ido procurar algo pra comer. Mas seu cachorro foi junto. Por que diabos o cachorro ainda o segue se ele nem comida têm pra dar?! Será que meu cachorro só gosta de mim por causa da ração que lhe compro? Tenho certeza que o cachorro do mendigo era mais amigo dele, pura camaradagem. Os dois compartilham de uma vida sofrida. Um não ajuda ao outro. Simplesmente resistem lado a lado. Meu cachorro não faria o mesmo por mim. Ordinário, só quer comer minha ração!
Chegou meu ônibus. Poltrona 31, janela. Assim que pude entrei e me assentei. A lateral do ônibus estava virada pra o lado onde o mendigo estava, era alto e eu poderia ver mais longe. Enquanto os passageiros embarcavam fiquei ali, procurando o mendigo. Na esperança de ver ele mal de alguma forma. Merda de pessoas irritantes. Pessoas velhas são irritantes. Entram no ônibus com a passagem na mão e olhando poltrona por poltrona pra no final sentar na numero 41. Que diabo! Não passou pela cabeça em ir direto ao fundo do ônibus?! O numero era a 42. Quase acertei! Mas precisava verificar o numero de cada poltrona até o fim do ônibus? E pior, ainda conferida cada vez o bilhete. Como se esquecesse cada vez que levantava a cabeça pra ler os números do assento. Velha idiota. Enfim ela sentou-se e os outros passageiros puderam sentam em seus lugares. Mas ela não parou por ai. Começou a tagarelar sem parar. Por que os velhos com o tempo perdem o olfato, a audição, a visão, mas não perdem a fala?! A velha desgraçada não calava a boca. Assuntos sem nexo. Por que falar sobre as cortinas das janelas? Que merda! Será que o mendigo se importaria se as cortinas combinavam com as poltronas? Claro que não, o idiota agora deve estar conversando com seu cachorro. E pior, ele responde. Então o mendigo ri. E o cachorro faz alguns truques, parecem mímicas. Os palhaços devem estar debochando de mim, de minha vida que segue a manada. Essa manada idiota que corre toda junta para o precipício, e me arrasta. O mendigo também está indo para o precipício, não há como fugir. Mas ele está indo por conta própria, sem pressa, sem medo. Afinal, o que tem ele a perder? Eu tenho muito a perder, e ele muito a ganhar. Merda, ele vai acabar me ganhando.
Estava escuro quando cheguei. Ainda tinha grama em frente a casa, igual quando sai. Igual a casa do vizinho. Meu cachorro sanguessuga estava dormindo. Minha mulher estava deitada assistindo algo na TV. Mas tinha deixado minha comida pronta, era só esquentar. Não tomei banho, e fui deitar com ela.
-Amor, me amaria se eu fosse um mendigo?
-Claro que sim, prometi estar contigo na riqueza ou na pobreza, lembra?
-Mas e se tivesse me conhecido já mendigo, seria capaz de me amar?
-Bem... Não sei, é difícil responder.
Uma mulher falava sem parar na TV, tenho quase certeza que era a mesma velha do ônibus, ou no mínimo o mesmo assunto. Com a cabeça já descansando sobre o macio travesseiro ainda pensei um tempo sobre o mendigo e toda essa afronta que cometera contra mim. Com sua indômita liberdade, tripudiando sobre minha vida, meus sonhos. Já nem sei se esses sonhos eram meus, nem se nasci com eles, nem o porquê devia correr atrás deles. Só sei que precisava realizá-los, se não... Mas de momento eu só precisava relaxar.
- Amor, já ia esquecendo, lhe trouxe um presente da viagem.
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